Os velhos sentiam-se cansados, abatidos pelo desgosto revelado em semblantes tristes, ruminando cabisbaixos – o desgosto não ergue um homem – o que se estaria passando, naquelas terras onde o demo andava à solta, sentindo e tentando afastar maus presságios. E à tristeza se juntou a fome, pois as suas forças tornavam-se insuficientes para o amanho da terra, que produzia miseravelmente o pouco que lhe deitavam, como que cansada e entristecida também. Desgosto que gera enfraquecimento, que por sua vez traz a fome, que torna mais fraca a fraqueza, que volta a gerar mais fome. A este ciclo se juntavam os roubos das pequenas sementeiras, arrancadas à terra antes ainda do seu completo amadurecimento e para desolação dos pobres camponeses.
As mulheres sentiam mais duramente a crise: a elas cabia a distribuição do pão que faltava. O sabão escasseava, tiveram que aprender a fazê-lo em casa. O café amargo que amargamente serviam, porque o pouco açúcar que conseguiam mal dava para adoçar o de algum doente ou criança mais necessitada. A metade ou quarto de pão de centeio que o padeiro lhes conseguia arranjar não chegava para dar um naco que jeito tivesse às crianças, a quem a fome obrigou a esquecer o de trigo. Não havia animais a tratar, porque não havia com que tratá-los, e foram comidos antes que a morte os devorasse ou aparecessem aqueles homens que os requisitavam para a guerra; os últimos bocados de carne salgada retirados de debaixo do solo de terra batida da própria casa (onde a haviam guardado), durante a noite e às escondidas dos vizinhos, pois cada um deles poderia ser um denunciante. Isto era o que já tinham ouvido contar a seus avós, e que se passara na guerra civil, durante as lutas e guerrilhas entre liberais e miguelistas. Mais valia prevenir… Nesses antigos tempos um homem até podia perder a vida se fosse da facção contrária à do interrogador… Perguntavam: “És a favor de D. Pedro ou de D. Miguel?”… E era desta forma que podiam morrer… Os olhos vermelhos de chorar e de cansaço dos pontos dados junto da candeia de petróleo transformada em candeia de azeite, que havia ainda da própria colheita, mas que mesmo assim tinha que ser racionado. As longas horas de insónia enquanto se recordavam bons momentos que parecia terem sido esquecidos, e os gestos dos ausentes, tão longe de casa, lutando por motivos desconhecidos, pouco significativos para tão grande sofrimento. A promessa feita à Senhora das Angústias e à Senhora da Piedade, ao Senhor dos Passos, ou a qualquer outro santinho das suas devoções. O terror da espera de alguma má-nova. O deitar das crianças magras e tristes que se sabiam com fome.
Assim era por toda a aldeia, assim também em casa dos Martins, mais conhecidos por Pélhinhas. O seu chefe, o avô António, costumava guardar as suas ovelhas, o seu pequeno rebanho, naqueles felizes e memoráveis tempos, vestindo aquelas peles à moda alentejana, o pelico, recordação dos tempos em que lá trabalhara, e na aldeia e arredores, onde tal vestimenta nunca entrara, começou a ser conhecido pelo António das Peles, mais tarde com o carinho da habituação pelo António Pélhinhas, alcunha que se estendeu a toda a família, só que o anexim não podia ser pronunciado perto da mãe do Inácio Martins, a Thereza Brites, mais conhecida por Thereza Rei-Mau, dado o seu mau génio, pois ela insultava todas as pessoas que a tal se atreviam.
A Thereza ia fazendo das tripas coração para alimentar a família, horas e horas fora de casa, amanhando a terra, em luta contra ela, tentando roubar-lhe o que ela se negava a dar-lhe, com uma força e teimosia que o seu homem nunca chegaria a ter, nem que de novo nascesse! Os filhos, ai os filhos! – O Inácio em França, penando sabe-se lá quanto! Que Deus Nosso Senhor o trouxesse com vida! As moças, a Maria Thereza e a Emília, já mulheres, sempre enfiadas em casa, sem gosto para uma saída, à excepção da missa ao Domingo, aconchegadas na sua pobreza, como que envergonhadas dela. O José, o mais novo, pequenote, enfezado, esse provavelmente nunca faria a tropa; quando se apresentasse às sortes devia ser logo rejeitado, e também, não era o melhor nestes maus tempos que decorriam? Olhavam-no com pena, perante tão franzino corpo, mas com alívio por o saberem livre de tão duro destino.
E o avô António sofria agora do mal dos mais velhos, com eles enrolando e chupando daqueles cigarros que aprenderam a fazer, com certas ervas secas e pisadas.
Dos quatro irmãos o Inácio era mais parecido com a irmã, a Maria Thereza, ambos muito decididos e trabalhadores. A Emília e o José Martins eram mais pacatos e acanhados.
Tinha a Maria Thereza um padrinho, o lavrador Constantino, homem abastado, que morava na Várzea, amigo dos pobres como poucos. À sua rica casa de lavoura não chegara a fome, e os cestos dos afilhados iam bem aviados quando era por eles era visitado.
O Inácio casou cedo com a Hermínia, que lhe deu seis filhos. Quando foi alistado já tinha dois pequenos. Que satisfeito que ele ficaria quando recebesse a última carta, se a recebesse, Deus fosse louvado! Pai, Filho e Espírito Santo! A mulher fora ao Povo, tirara com os dois filhos o retrato, que passara de mão em mão por toda a aldeia, antes de chegar à do seu Inácio.
O Inácio ainda trabalhou em França, mas roído de saudades da família e dos filhos, talvez mais depois de receber o retrato, resolveu voltar. Regressou sem honras nem distinções, reduzido ao seu anonimato, quem sabe se não tendo feito parte das tropas dos bravos portugueses do combate de La Lys, na Flandres, em que, embora derrotados pelos exércitos alemães, e tendo morrido mais de 7500, se distinguiram. Foi apenas um sobrevivente. Quando quis saber e o interroguei ele já não me conseguia responder, porque depois de um AVC a sua fala ficou deficiente, por vezes imperceptível. Mas ainda sorria, no seu ar bondoso, da recordação desses tempos!
As mulheres sentiam mais duramente a crise: a elas cabia a distribuição do pão que faltava. O sabão escasseava, tiveram que aprender a fazê-lo em casa. O café amargo que amargamente serviam, porque o pouco açúcar que conseguiam mal dava para adoçar o de algum doente ou criança mais necessitada. A metade ou quarto de pão de centeio que o padeiro lhes conseguia arranjar não chegava para dar um naco que jeito tivesse às crianças, a quem a fome obrigou a esquecer o de trigo. Não havia animais a tratar, porque não havia com que tratá-los, e foram comidos antes que a morte os devorasse ou aparecessem aqueles homens que os requisitavam para a guerra; os últimos bocados de carne salgada retirados de debaixo do solo de terra batida da própria casa (onde a haviam guardado), durante a noite e às escondidas dos vizinhos, pois cada um deles poderia ser um denunciante. Isto era o que já tinham ouvido contar a seus avós, e que se passara na guerra civil, durante as lutas e guerrilhas entre liberais e miguelistas. Mais valia prevenir… Nesses antigos tempos um homem até podia perder a vida se fosse da facção contrária à do interrogador… Perguntavam: “És a favor de D. Pedro ou de D. Miguel?”… E era desta forma que podiam morrer… Os olhos vermelhos de chorar e de cansaço dos pontos dados junto da candeia de petróleo transformada em candeia de azeite, que havia ainda da própria colheita, mas que mesmo assim tinha que ser racionado. As longas horas de insónia enquanto se recordavam bons momentos que parecia terem sido esquecidos, e os gestos dos ausentes, tão longe de casa, lutando por motivos desconhecidos, pouco significativos para tão grande sofrimento. A promessa feita à Senhora das Angústias e à Senhora da Piedade, ao Senhor dos Passos, ou a qualquer outro santinho das suas devoções. O terror da espera de alguma má-nova. O deitar das crianças magras e tristes que se sabiam com fome.
Assim era por toda a aldeia, assim também em casa dos Martins, mais conhecidos por Pélhinhas. O seu chefe, o avô António, costumava guardar as suas ovelhas, o seu pequeno rebanho, naqueles felizes e memoráveis tempos, vestindo aquelas peles à moda alentejana, o pelico, recordação dos tempos em que lá trabalhara, e na aldeia e arredores, onde tal vestimenta nunca entrara, começou a ser conhecido pelo António das Peles, mais tarde com o carinho da habituação pelo António Pélhinhas, alcunha que se estendeu a toda a família, só que o anexim não podia ser pronunciado perto da mãe do Inácio Martins, a Thereza Brites, mais conhecida por Thereza Rei-Mau, dado o seu mau génio, pois ela insultava todas as pessoas que a tal se atreviam.
A Thereza ia fazendo das tripas coração para alimentar a família, horas e horas fora de casa, amanhando a terra, em luta contra ela, tentando roubar-lhe o que ela se negava a dar-lhe, com uma força e teimosia que o seu homem nunca chegaria a ter, nem que de novo nascesse! Os filhos, ai os filhos! – O Inácio em França, penando sabe-se lá quanto! Que Deus Nosso Senhor o trouxesse com vida! As moças, a Maria Thereza e a Emília, já mulheres, sempre enfiadas em casa, sem gosto para uma saída, à excepção da missa ao Domingo, aconchegadas na sua pobreza, como que envergonhadas dela. O José, o mais novo, pequenote, enfezado, esse provavelmente nunca faria a tropa; quando se apresentasse às sortes devia ser logo rejeitado, e também, não era o melhor nestes maus tempos que decorriam? Olhavam-no com pena, perante tão franzino corpo, mas com alívio por o saberem livre de tão duro destino.
E o avô António sofria agora do mal dos mais velhos, com eles enrolando e chupando daqueles cigarros que aprenderam a fazer, com certas ervas secas e pisadas.
Dos quatro irmãos o Inácio era mais parecido com a irmã, a Maria Thereza, ambos muito decididos e trabalhadores. A Emília e o José Martins eram mais pacatos e acanhados.
Tinha a Maria Thereza um padrinho, o lavrador Constantino, homem abastado, que morava na Várzea, amigo dos pobres como poucos. À sua rica casa de lavoura não chegara a fome, e os cestos dos afilhados iam bem aviados quando era por eles era visitado.
O Inácio casou cedo com a Hermínia, que lhe deu seis filhos. Quando foi alistado já tinha dois pequenos. Que satisfeito que ele ficaria quando recebesse a última carta, se a recebesse, Deus fosse louvado! Pai, Filho e Espírito Santo! A mulher fora ao Povo, tirara com os dois filhos o retrato, que passara de mão em mão por toda a aldeia, antes de chegar à do seu Inácio.
O Inácio ainda trabalhou em França, mas roído de saudades da família e dos filhos, talvez mais depois de receber o retrato, resolveu voltar. Regressou sem honras nem distinções, reduzido ao seu anonimato, quem sabe se não tendo feito parte das tropas dos bravos portugueses do combate de La Lys, na Flandres, em que, embora derrotados pelos exércitos alemães, e tendo morrido mais de 7500, se distinguiram. Foi apenas um sobrevivente. Quando quis saber e o interroguei ele já não me conseguia responder, porque depois de um AVC a sua fala ficou deficiente, por vezes imperceptível. Mas ainda sorria, no seu ar bondoso, da recordação desses tempos!
Autoria e Direitos Reservados a Maria Lúcia Santos
Publicado no Jornal “Terra Ruiva”, nº. 116, de Novembro de 2010, pág. 13 e em Maria Lúcia Martins dos Santos Cabrita, "Afeição do Tempo", Arandis-Editora (no prelo)
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