José Joaquim Fernandes contou sempre ao filho a sua história. A sua vida militar, corrida por locais diversos, em que passou por terras distantes como Luanda, Moçâmedes, Sá da Bandeira e Cuangar. Na sua casa na Bismula, Sabugal, contava as suas experiências ao filho, que o ouvia sorvendo-lhe as palavras. Como todos os que falam, pois são menos dos que os que encerram em si as experiências, José desprendeu-se da dor e do sofrimento, e transformou a experiência em algo de belo, de maravilho, passada na sua Angola que tanto amara e da qual tantas saudades tinha.
Uma das experiências que seu filho reteve foi a do que viria, anos depois, a chamar «O massacre do Cuangar»[1]. Corria o ano de 1914, e de um lado estavam portugueses, no Baixo Cubango, à beira do rio com o mesmo nome. Do outro lado do rio era terra de alemães, o Sudoeste Africano. O destacamento português era constituído por tropa portuguesa e angolana, dizia. Com eles, na senzala, convivia ainda um «funante», comerciante português, conhecido por Sr. Machado.
Rebentada a guerra o convívio entre portugueses e alemães adensou-se. Contudo, José não ficaria ali para ver o despoletar da violência. Ferido gravemente num pé, num incidente numa oficina, e sem médico ou posto para atende-lo, foi evacuado para Sá da Bandeira, num carro puxado por juntas de bois. Longa viagem… 3 meses em que temeu perder o pé e a perna. Sem medicamentos, José foi tratado com água, sal e plantas africanas. O abandono de cada um à sua sorte era notório em África.
Chegados ao Hospital de Sá da Bandeira, souberam então da triste notícia. Os alemães tinham atacado Cuangar no dia 31 de Outubro de 1914. Dizia-se que não havia sobreviventes mas soube-se depois que alguns homens, embrenharam-se pelo mato e chegaram a um posto, a 300 km norte. Outros ficaram pelo caminho, feridos, doentes ou atacados por animais ferozes. Ali ficou José a convalescer. Ali sobre do ataque a Naulila, outra história que contava com tristeza.
José Joaquim Fernandes nasceu a 25 de Maio de 1891 na Bismula, Sabugal, filho de João Fernandes e Luísa Nunes. Era escolarizado, sabendo ler e escrever, o que não era o mais comum, num país cujo índice de analfabetismo era elevado nos inícios do século XX. Em 1908 perdeu a sua mãe. A 5 de Agosto de 1911, conforme a sua Caderneta Militar, assentou praça no Regimento de Infantaria 12, na Guarda, sendo incorporado no seu 1º Batalhão em 12 de Janeiro do ano seguinte. A 29 de Abril de 1912 termina a instrucção de recruta. É soldado. Desejoso de alargar os seus horizontes, sentido na vida de aldeia uma prisão, referia a seu filho que se ofereceu para substituir um soldado recrutado. Assim voltou a partir, para seguir os caminhos de África.
Para lá foi como voluntário. A recruta teria acabado e ele voluntaria-se novamente para conhecer outros mundos. A 1 de Setembro de 1912 fica adido ao Depósito de Praças do Ultramar e em 7 de Setembro embarcou para Angola, integrado na 1º Companhia Europeia de Infantaria de Angola. Não se sonhava ainda a guerra quando, a 30 de Setembro, desembarcou no seu destino. Entre 26 de Dezembro de 1912 e 1 de Agosto de 1914, fez parte da guarnição de Cuangar. A 1 de Agosto é gravemente ferido e evacuado para Sá da Bandeira, no Lubango, o que acabaria por salvar-lhe a vida pois, a 31 de Outubro, a zona foi atacada pelos alemães.
De 1 de Novembro de 1914 a 13 de Maio de 1915, depois de um período que deverá ter sido totalmente dedicado à recuperação, no hospital, passou a fazer parte da guarnição do Distrito de Huila. Em 14 de Maio de 1915 passou à 4ª Companhia de Depósito de Angola, na qual aguardou o seu regresso a Portugal. Em 18 de Julho daquele ano acabaria por embarcar em Moçâmedes, rumo a Lisboa, juntamente com outros militares, tendo sido transportado pelo paquete Zaire, conforme uma Guia de Marcha passada pela 4ª Companhia de Depósito de Angola, Quartel em Moçâmedes, 17 de Julho de 1915, no Arquivo Histórico Ultramarino. Desde essa data passará a pertencer ao Depósito de Praças do Ultramar em Lisboa, tendo vindo a terminar o seu serviço militar em 9 de Setembro de 1915, conforme a sua maravilhosa caderneta nos refere.
Terminamos com as palavras do seu próprio filho, a quem José tanta coisa contou. Refere Manuel Fernandes: «O massacre de Cuangar, lá nas terras do fim do mundo, na imensa Angola, nunca lhe saiu da memória. Aí passara quase dois anos. Um ataque traiçoeiro massacrara amigos e companheiros de armas. Um golpe inesperado num pé que o levara a ser evacuado para o Hospital de Sá da Bandeira livrara-o da morte. São os segredos do destino e sobretudo os insondáveis mistérios do Alto»[2].
[1] Manuel Leal Fernandes, Angola. As brumas do mato, Livraria Telos Editora, Porto, 1997, pp. 365 – 373.
[2] Manuel Leal Fernandes, Angola. As brumas do mato, Livraria Telos Editora, Porto, 1997, p. 373
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