Maria da Conceição Pires Coelho veio aos Dias da Memória na Assembleia da República na esperança de poder partilhar um pouco da vida de seu pai, o médico açoriano Tito Pires Coelho, que em 1917 partiu para França incorporado no Serviço de Saúde do CEP. Desejava resgatar algumas memórias, as quais guarda consigo em meio à saudade que tem dos seus entes queridos, já falecidos. Isto porque seu pai e principalmente sua mãe, lhe contaram diversas histórias e algumas peripécias relativas à estadia deste médico em terras de França e não só.
Tal como nos contou Maria da Conceição, sua mãe recordava-se bem de como o marido voltou da guerra irreconhecível. Dizia ela à sua filha que aquela era a triste realidade: Tito Pires Coelho tinha voltado diferente, e ela conseguia perceber isso, atribuindo as culpas ao horror da guerra. Este médico, pioneiro em cirurgia nos Açores, de onde era originário, sendo natural de S. Miguel, vinha notoriamente afectado pelo seu percurso no conflito, em França, onde serviu. E uma das coisas que ele não esquecia teria sido a forma como viu falecer os militares portugueses gaseados. Referia que era uma morte horrorosa, que os homens começavam a ficar roxos, lenta e progressivamente, sendo um dos espectáculos mais hediondos que ele já teria presenciado na vida, segundo palavras da sua própria filha, que as escutou de sua mãe, o grande receptáculo das histórias de Tito Pires Coelho.
Maria da Conceição refere que na família se considera que o pai deverá ter vindo da guerra abalado do sistema nervoso, o que teria afectado os filhos que nasceram posteriormente ao conflito, dizendo-se na família que isso sucedeu de forma progressiva. Enquanto a vida se desenrolava em Portugal, e Tito Pires Coelho não esquecia o que sucedeu no Front, foram nascendo os seus filhos, e enquanto o irmão mais velho de Maria da Conceição Pires Coelho era um homem muito calmo, tal como o era seu pai pelo menos até partir para a Grande Conflagração, Maria da Conceição, que nasceu depois da guerra, era já algo nervosa, sendo que a sua irmã o era um pouco mais, e o seu irmão mais novo, um homem extremamente nervoso.
Depois deste internamento, a saúde do médico ressentir-se-ia até ao final da guerra. É mandado para o Posto de Socorro da Base em 14 de Junho de 1918, baixando ao Hospital de Base nº 2 no dia seguinte. A sua vida seria, doravante, vivida entre o Hospital de Base nº 2, de onde tem alta em Setembro, e a Ambulância nº 4, onde é colocado a 21 de Junho de 1918 - mas na qual não sabemos se chegará a prestar serviço efectivo. Teria ainda a possibilidade de gozar alguns dias de convalescença em Paris, nos finais de Outubro, pouco antes da guerra terminar. Uma vez presente no Quartel-general da Base, retornaria à sua unidade, apenas para ser colocado, por Ordem do Corpo de 25 de Janeiro de 1919, na Ambulância nº 6. Da sua ficha não consta nenhum tempo que possa ter servido na cidade de Lille, onde refere ter estado enquanto médico, mas sim que foi abatido ao efectivo do CEP em 8 de Junho de 1919, desembarcando em Lisboa, por via terreste, em 26 daquele mesmo mês.
Tito Pires Coelho contava à esposa muitas coisas sobre a guerra. Por exemplo, quando foi do dia 9 de Abril, e da fatídica Batalha de La Lys, referia ele que os soldados portugueses foram «carne para canhão», tendo muitos sido mortos, feridos e aprisionados. Contava igualmente episódios curiosos como por exemplo o caso de ter ficado amigo de um alemão, que se encontrava do outro lado da linha, e quando não havia combates, chegariam mesmo a conseguir conversar um com o outro. Maria da Conceição refere que chegou a ver a fotografia do senhor «Oskar» ou «Osken» Bach em casa, e que depois da guerra, o mesmo terá vindo para S. Miguel, nos Açores, onde ainda o conheceu. Traria apenas a roupa do corpo, e com alguma ajuda ali se estabeleceu, tendo posteriormente partido para os Estados Unidos da América.
O pai de Maria da Conceição contava ainda que tinha um impedido, analfabeto, mas que era intérprete. O que muito o espantava, e continua a surpreender Maria da Conceição, pois apesar de não saber ler nem escrever, ele conseguia ser intérprete das várias línguas que passavam pelo Front, e dizia a Tito Pires Coelho: «Meu Tenente, os franceses têm tudo ao contrário!» Dizia isso por causa da palavra «Cu», pois que em francês o mesmo ficava no pescoço! Dizia igualmente que o mesmo impedido, analfabeto como era, queria escrever cartas para Portugal, para a namorada que cá tinha deixado. Quem as escrevia era Tito Pires Coelho, que em tom de brincadeira «escrevia barbaridades», refere a sua filha, ou seja, patetices em tom de brincadeira, sem que o impedido soubesse do que ele fazia, ou que ele alguma vez tivesse dito o que escreveu.
Os hábitos alimentares do médico militar acabariam igualmente por mudar em França, influenciando posteriormente a vida de toda a família que, em S. Miguel, comia coisas muito diferentes dos seus conterrâneos, como por exemplo espargos, alface ou determinados queijos, os quais comeria à francesa, sempre depois da refeição. Comia igualmente dois ovos ao pequeno-almoço e caldo verde, este último um hábito adquirido já em Portugal. Já os bifes eram feitos à inglesa, o que o próprio médico ensinou à esposa, para que os pudesse comer em casa. Curioso é que não lhe podia ensinar todos os truques, pois no Front, tal como ele próprio referia, os bifes eram feitos nos motores dos carros, aproveitando o calor dos mesmos e colocando depois alguns temperos.
Para além destes aspectos mais leves, o seu pai referia que tinha dormido uma ou duas noites junto de umas roupas de um soldado que falecera gaseado, e por isso, pese embora a pouca exposição aos gases que tal representasse, teve sempre, até ao final da sua vida, uma tosse crónica, que o desgastava e que sempre atribuiu a tal facto. Não foi o único facto que o afectaria, pois estando Tito Pires Coelho a tomar banho, descobriu que tinha uma pequena bala no ombro. Desconhecia que tinha sido baleado, e só deu pelo pequeno projéctil quando detectou um alto. Nem dera por ter sido baleado, e a bala só foi removida alguns anos depois, pois em nada o incomodava. Nunca referiu que esteve internado várias vezes. Apenas a sua ficha de combatente menciona esses outros pormenores.
Quando termina a guerra, segundo o que o próprio contava, Tito Pires Coelho terá ainda servido enquanto médico na cidade de Lille. Maria da Conceição acabaria por visitar aquela belíssima cidade, anos depois, para descobrir onde o pai tinha estado logo após o Armistício. Quanto a Tito, após o términus da guerra, regressaria a Portugal, para aqui continuar a exercer a sua profissão. Primeiro esteve no norte, em Baião, e depois acabaria por regressar a S. Miguel, nos Açores, por ter vagado o lugar de médico em Vila da Poça.
A povoação nada tinha, e ele acabaria por ali fundar o hospital da região, bem como um banco, e terá ainda criado uma cooperativa para os camponeses da zona, onde podiam ir vender o seu leite por preços tabelados, pois sentia que os mesmos eram sobejamente explorados. E ali praticaria todo o tipo de cirurgias, em especial as simples mas que curavam, as que dizia serem essenciais, como as da remoção do apêndice, ou as que fazia ainda ao estômago e outros órgãos similares, só não praticando as mais complexas, como as dedicadas à neurocirurgia.
Curiosamente, como precisava costurar bem, treinava em casa os pontos, ou seja, treinava como haveria de fazer as suturas nos pacientes, o que a mulher relatou aos filhos anos depois. No entanto, acabaria por ter alguns aborrecimentos e deixaria a unidade hospitalar que ele mesmo fundou, para fundar naquela mesma zona uma Casa de Saúde.
Assim, fruto da sua passagem pela Grande Guerra, refere a família que ele teria este gosto pelo incentivar da prática cirúrgica nos Açores. Isto porque, quando algo grave sucedia, e era necessária uma intervenção cirúrgica, os habitantes dos Açores deveriam dirigir-se a Lisboa para fazê-la. A dificuldade de movimentação era óbvia, com a existência apenas de barco, e apenas duas vezes por mês! Se não pudessem locomover-se, permaneciam sem a mesma. Tito Pires Coelho, que não se conformava com esta situação, incentivaria a prática da cirurgia em S. Miguel, Açores, o que nos foi relatado como sendo provavelmente uma reacção causa-efeito da sua estadia no Front.
Maria da Conceição conta ainda que fez os seus estudos em S. Miguel, desejando depois continuá-los em Lisboa, onde desejava seguir Belas-Artes. Seu pai deu-lhe duas hipóteses: ou Direito ou ficar em S. Miguel. Ela terá ainda tentado vir para Filosofia, mas seu pai disse-lhe logo que «Letras são Tretas» e deu-lhe a mesma hipótese de escolha: Direito ou nada. Maria da Conceição acabaria por vir para Lisboa, para cursar Direito, ficando alojada num lar de freiras. Quando estudava, não se encontrava só, pelo que se queixou ao pai que ali não podia ficar alojada, estava habituada a estudar sozinha e não conseguia fazê-lo, por causa da companhia e do barulho. O pai logo afirmou que o que ela detinha era uma forte falta de vontade, pois que ele tinha tido colegas durante a guerra que durante os bombardeamentos conseguiam estudar! Maria da Conceição disse-nos então sorrindo: «eu fiquei sempre com aquela sua frase na ideia, e dizia até, "bom, se calhar eu preciso mesmo é de bombardeamentos para conseguir estudar"!».
A filha de Tito Pires Coelho recorda-se bem do pai, das aventuras que ele contava e da máscara de gás que viu longos anos no sótão da sua casa. «Parecia ter uma tromba de elefante, e tinha uns olhos enormes», refere, sendo que ela e os irmãos por vezes brincaram com a máscara, que hoje já não existe. E como prova trouxe não só uma fotografia do pai, em que ele teria 29 anos, como o próprio dizia, como uma fotografia sua, vestida com a farda de seu pai, onde podemos ver o sorriso aberto de uma pequena menina que não sabia ainda o que o seu pai passara na Grande Guerra. Curiosamente, como a própria refere, atrás de si encontrava-se um enorme anexo da sua casa, que o pai mandara construir para doentes operados, que ali acolhia.
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