A história do Professor Doutor Luís António Martins Raposo, nascido a 20 de Maio de 1892, chegou até nós por mão de um dos seus familiares, o neto, Miguel Raposo, que recolheu informação proveniente de elementos diversos da sua família, incluindo suas tias, ainda vivas, que compilou, por forma a nos permitir observar um pouco melhor a vida de um médico que esteve na frente de batalha portuguesa na Primeira Guerra Mundial.
Nascido em Caçarelhos, Luís António ingressou em Coimbra, na Universidade de Medicina, para se formar, tendo completado o curso exactamente no ano da grande mobilização e do Milagre de Tancos. Assim, 1916 seria o ano da finalização de uma etapa de estudos e o começo de uma outra fase da sua vida, que o faria passar pela frente portuguesa em França, enquanto médico do Serviço Médico do C.E.P. Ainda terá sido convidado para 2º Assistente de Obstetrícia, mas não chegaria a ocupar o lugar por causa da mobilização a que foi sujeito. Assim partirá para a frente europeia enquanto Oficial Médico na Grande Guerra. Ali permaneceu dois anos, e terá recebido várias condecorações e louvores, entre estas uma Cruz de Guerra.
Regressado de França, casou com Antónia de Jesus Moreira, natural de Peredo, Macedo de Cavaleiros, e foi pai de 3 filhos, Maria Emília, Maria Helena e Luís José. Exerceu ainda durante doze anos no Hospital Militar de Coimbra, onde tinha como função a chefia da cirurgia daquela unidade hospitalar e da qual foi desvinculado por seu desejo e a seu pedido. Acumulou com a função de Chefe de Cirurgia as funções de 1º Assistente de Obstetrícia e Ginecologia em Coimbra. Em 1942 foi-lhe entregue a regência da cadeira de Patologia Cirúrgica e a respectiva Direcção e Serviço. Em 1950 era Director de Clinica dos Hospitais da Universidade.
A sua vida académica é consideravelmente activa, foi numerosa a sua participação em concursos universitários, cursos, reuniões científicas e congressos da especialidade. Foi ainda autor de números documentos científicos. Em 1930 teve acção preponderante no surgimento da primeira Casa de Saúde em Coimbra. Em 1945 encontrava-se a prestar as suas Provas para Professor Catedrático, o qual se tornou, e em 1956 estaria a reger a Cadeira de Clínica Cirúrgica. Regeu o Curso de Parteiras anexo à Faculdade de Medicina. Em 1961, compreendendo os avanços do tempo, foi com muito trabalho e empenho, e fruto do mesmo, que conseguiu levar para Coimbra uma delegação do IPO (Instituto Português de Oncologia). Foi Vogal da Comissão Directora do IPO a partir de 1967, e exonerado, a seu pedido, em Outubro de 1974. Manteve-se, apesar de atingir a idade de reforma em 1962, muito activo até à data da sua morte. Faleceu em Coimbra a 19 de Abril de 1985, não sem antes deixar um legado duradouro. O seu filho, o Professor Doutor Luís José Moreira Martins Raposo, viria a seguir os passos de seu pai, e tornou-se igualmente um distinto Cirurgião e lente na Faculdade de Medicina, seguindo o exemplo de seu pai.
O seu espólio é vasto, como bem nos mostra, em nome da família, Miguel Raposo. Contudo, um dos aspectos mais interessantes deverão ser as suas próprias memórias, que deixou para memória familiar póstuma, dedicadas a seus netos. «Nem tudo o que luz é oiro…» refere. E, entre as suas páginas, Miguel Machado encontrou palavras dedicadas à sua presença no conflito europeu. Com a sua autorização, reproduzimos agora o que Luís António Raposo, Oficial Médico do CEP, nos legou, fruto da experiência pessoal naquela que veio a ser descrita como «A Guerra que acabaria todas as Guerras».
Estas são as suas palavras:
«Em fins de Abril do meu 5º e último ano de Curso (1916) soube na minha aldeia, onde gozava as últimas férias de Páscoa como estudante, que havia sido mobilizado para uma Divisão de Instrução em Tancos. Tratava-se da primeira e até essa altura inocente manifestação da nossa entrada na 1ª Grande Guerra. Militarmente eu não passava de um soldado raso licenciado, enquanto que a académica e socialmente estava prestes a conquistar o diploma de médico. Só como medida de Orates se explicaria que me obrigassem de tal jeito a perder o ano, aproveitando um mísero soldado em detrimento de um oficial médico, como seria volvidos poucos meses se me deixassem formar.
Para matar o tempo e só o tempo – mui sinceramente o creio! – fui clinicando na minha aldeia até ser convocado para a Guerra, facto que se deu no dia 31 de Dezembro de 1916. Ia, assim, iniciar forçadamente uma carreira para a qual jamais me sentira com vocação. Bem certo é que “o homem pões e Deus dispõe”! Por ser esta a sequência cronológica concedamos-lhe a prioridade no folhão a seguir.
A tantos de Fevereiro desembarquei em Brest. Frio de gelar, como se calcula. No dia imediato segui com outros Oficiais para Aire-Sur-La-Lys, onde existia um incipiente Quartel-General das Forças Expedicionárias Portuguesas e em cujo local nos devia ser dado destino, visto irmos desacompanhados de soldados. Três dias de frio e de fome como não me lembro de ter passado!
Em Aire-Sur-La-Lys fui destacado para o Batalhão de Infantaria 21, magnífica Unidade na qual contraí boas amizades e onde me foi dado gozar de óptima camaradagem e conviver com excelentes soldados. A ele me juntei na aldeia de Quernes e nele permaneci até depois do fatídico 9 de Abril, ou seja até quando pôde dar-se por terminada a nossa actuação efectiva na Guerra. Não falo do frio e da fome com que aportei a Quernes altas horas da noite, nem do transporte para esta aldeia, distante apenas 4 quilómetros mas que demorou apesar disso nada menos de 6 horas, por desculpar de algum modo as primícias da nossa organização em terra estranha. Pobres de nós e pobres dos ingleses que nos suportaram em obediência a imposições políticas do nosso Governo!
Na 2ª Grande Guerra Salazar soube manter o prestígio do País e de aliados da Inglaterra sem nos sujeitar ao sacrifício inútil e ridículo da nossa presença nos campos de batalha. Ajuíze quem quiser da envergadura duns e doutros estadistas. Pobres das vítimas de então e felizes dos contemplados de agora!
O inverno desse ano, isto é de 1917, foi particularmente rigoroso. Parte passámo-lo em Quernes, outra parte em Enguinegatte e a caminha das trincheiras em visitas de treino ou, talvez melhor, de acomodação. Como éramos três os médicos (Dr. Maldonado, Dr. Areso e eu) e quatro as Companhias do Batalhão coube-me, como mais novo, participar duas vezes nessas antipáticas visitas junto de Unidades inglesas de Infantaria.
Em princípios de Junho foi-nos dada a honra de tomar à nossa conta sector de Lavantie a Lacouture. A minha Unidade ocupou a fracção de Richebourg - St. Vast, próximo de Neuve-Chapelle. Por aí me gastei quase todo o tempo de permanência nas trincheiras.
Recordo com emoção o meu baptismo de fogo na noite de Santo António. Ocupava a linha da frente o Batalhão de Infantaria 22. Súbita e inesperadamente os alemães desencadearam um fortíssimo ataque com artilharia, morteiros, metralhadoras e gases asfixiantes, como que a presentear as tropas portuguesas pela sua recente entrada em actividade. O meu Batalhão, na situação de reserva nessa altura, foi chamado em reforço da Unidade atacada. Sob incessante metralha para lá nos dirigimos, deparando-se-nos logo à chegada o espectáculo confrangedor de um marcado desalinho das nossas forças, à mistura de muitos mortos, feridos e gaseados. Tomei conta do Posto de Socorros da frente, onde desde o anoitecer do dia 12 até alta manhã do dia seguinte não tive um minuto de descanso, tantos os feridos e gaseados assistidos e tantas as deficiências compreensivelmente verificadas neste primeiro e delicado contacto com a guerra a sério.
Lembro como primeiro e inglório serviço prestado o exame e respectivo registo de óbito do Tenente Grilo atingido na região temporal esquerda com um estilhaço de granada. Como triste despojo da refrega recordo-me de ter contado nas mediações do Posto, quando tudo amainou, nada menos de trinta mortos. Dos feridos e gaseados não tomei nota mas foram muitos mais, como é natural. Vi pela primeira e única vez morrer três soldados atingidos pelos gases asfixiantes. Horrível e pungente morte a desses desgraçados! Dos muitos quadros temerosos e cruéis oferecidos pela guerra foi este, sem dúvida, o mais impressionante.
No diploma que me concedeu a Cruz de Guerra faz-se menção do meu comportamento nesta emergência.
Lance semelhante, mas esse mais simpático, porque vitorioso, foi o “raid” da 1ª Companhia meses mais tarde, debaixo do comando do bravo e distintíssimo Capitão Ribeiro de Carvalho e no qual tomou parte, entre outros briosos e valentes oficiais o heroico Alferes Gonzaga, cuja comparticipação no C. E. P. constituiu por si só uma autêntica epopeia de bravura e de “panache”, que só não descrevo por não ser este o lugar azado.
Regressei ao país em Fevereiro de 1919. Vim num navio inglês improvisado de Hospital com uma leva de cerca de 600 praças e alguns oficiais.»
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