No início da Guerra e dividido quanto à nossa participação neste embate, para a nossa República, ainda tão recente, era a oportunidade de ouro para se poder impor internacionalmente. A 9 de Março de 1916, após ver aprisionados alguns dos seus navios ancorados nos portos portugueses, A Alemanha declara guerra a Portugal. Era o início do caos.
A participação de Portugal, mesmo que por um motivo válido que era o da defesa e manutenção das Colónias, trouxe ao país elevados custos para a sua economia, já muito debilitada por todas as sucessivas crises políticas. Ao aumento de impostos e do custo de vida veio juntar-se a falta de alimentos e uma enorme rebelião nacional. A diminuição da mão-de-obra masculina, quase toda ela empenhada nesta guerra, onde muitos deles perdiam a vida ou vinham de lá feridos ou mesmo incapacitados, obrigou ao fecho de muitas portas de fábricas, empresas, etc. As mulheres portuguesas viam partir para um destino sangrento pais, maridos, irmãos e filhos sem a certeza de algum dia voltar.
Desesperado por uma vitória que a cada dia via mais longe, o inimigo atacava ferozmente os mares. Os alemães tinham desenvolvido autênticas máquinas de destruição, que, armados com potentes canhões, apareciam de surpresa a velocidades nunca inferiores a
No mar, Portugal batia-se como podia. Contra os inúmeros submarinos alemães, a nossa armada tentava, a todo o custo, sobreviver. Era uma autêntica batalha de David contra Golias.
E se ingleses e franceses possuíam unidades navais de superfície extraordinárias, Portugal podia apenas valer-se de cruzadores obsoletos como eram o Vasco da Gama,
Almirante Reis, Adamastor e São Gabriel, e de míseros contratorpedeiros com canhoeiras armadas de artilharia de pequeno calibre e reduzido alcance. A situação agravava-se pelo facto de o nosso país ter poucas unidades para comboiar e proteger a nossa frota mercante. O Governo português não tinha saída. Foi obrigado a mobilizar outro tipo de embarcações, autênticas cascas de noz, algumas delas pequenos barcos de pesca.
500 toneladas, era este o peso do vapor Elite. Baptizado de Augusto de Castilho e promovido a caça-minas, foram-lhe instaladas, na proa uma peça de calibre 65 mm e na popa outra de 47 mm. Fugir das garras do inimigo era, por isso, difícil.
Quando lhe foi dada a ordem para comandar esta pequena embarcação, Carvalho Araújo ficou perplexo. Mais uma vez não recusou a missão. Foi-lhe ordenado que comboiasse o Gil Eanes, com destino a França. A carga era preciosa, tratava-se de tropas e munições. Carvalho Araújo cumpriu a sua tarefa de militar e voltou são e salvo à sua pátria. Mas o guerreiro nunca descansa e passados poucos dias de licença em terra, ainda não refeito da doença que o assolava desde Moçambique, chega uma nova ordem, uma comissão de guerra que lhe impunha o policiamento do mar da Madeira e defesa desta ilha.
Carvalho Araújo, em toda a sua vida de Militar, jamais recusou uma missão. Nunca baixou os braços nem se rendeu, enquanto, se calhar, outros o fariam. Mas aqueles que sempre pensou serem amigos leais tinham ferido o seu orgulho lá no fundo.
Conhecendo bem de perto os perigos que impunham esta missão e se alguma dúvida ainda tinha sobre os verdadeiros motivos de tais comissões, o ilustre Comandante escreveu no seu livro de lembranças:
“ 1º - Tenho já duas comissões de guerra para que voluntariamente me apresentei quando a minha situação política permitia esquivar-me, e havendo vários primeiros-tenentes que ainda não têm comissão alguma, não devia recair sobre mim o desempenho desta nova comissão. Os que deviam marchar valem-se dos empenhos para não irem, eu marchei quando podia deixar de o fazer.
2º - Tendo regressado de África apenas há três meses e acabado a licença da Junta apenas há um mês, devia ser-me dada uma comissão de terra evitando a minha brusca passagem de um clima quentíssimo para regiões frias.
3º - Só doidos se lembram de mandar um navio mal artilhado para regiões onde os submarinos actuam, obrigado a fazer viagens numa época de lua cheia, o que está completamente condenado. Fica pois estabelecido que vou fazer uma comissão perigosa que a outros pertencia e que a minha nomeação só poderia ter obedecido a perseguição política. Que sobre os autores de tal patifaria caiam todas as responsabilidades do que possa suceder.”
Nesta altura existiam já negociações para a rendição dos alemães, o que viria a suceder um mês e meio depois. Desta forma, tanto do lado do inimigo como do lado dos aliados, as operações de guerra haviam sido suspensas temporariamente. E se não havia um motivo plausível para enviar Carvalho Araújo nesta missão suicida, já que não havia qualquer necessidade de policiar os mares da Madeira, despediu-se do seu irmão Fernando, confiando-lhe o seu livro de anotações e antecipando já o terrível destino que o esperava: “Toma este pequeno memorando, que rabisquei há mais ou menos um mês, no meu livro de notas. É absolutamente certo que lá pelos mares, para onde vou, deixarei a vida. Quando a notícia da minha morte chegar ao teu conhecimento, publica-o. Adeus!” Este memorando foi posteriormente editado no jornal “O Século”.
Também sua esposa, Ester, conhecia bem o desespero de Carvalho Araújo. Noites mal dormidas, a doença parecia ser o único golpe que o parecia vencer. Enervado com todas as situações que se sucediam e que não faziam qualquer sentido, Carvalho Araújo esgotava, pouco a pouco, as suas forças.
“ Meu marido foi sempre um perseguido, – disse 41 anos mais tarde a Alberto Cutileiro – devido aos seus ideais democráticos; protelado em promoções, desfeiteado constantemente, sem quase direito a folgas, que, quando as tinha, eram alteradas para seguir imediatamente em serviço, sem ter tempo sequer de vir a casa mudar de roupa ou beijar os filhos, e isso meses a fio, nos arrasantes comboios com tropas para França a que dava escolta atravessando a mais perigosa zona infestada de submarinos que ali operavam. Encontrava-se de tal forma esgotado, que pedir-lhe mais seria impossível; tudo isto acrescido de afrontas, as mais cruentas, durante o período de acesso do consulado de Sidónio Pais e na sua perseguição a tudo o que fosse democrático.
A sua mágoa – continuou de lágrimas nos olhos – era atroz, como homem ofendido nos seus ideais e como militar disciplinado que sempre foi, o ver-se preterido causava-lhe profunda dor. Quando pela última vez partiu, ao despedir-se de mim, o que surpreende, porque poucas vezes tinha tempo de o fazer, vi nele a vontade de encarar o perigo de frente e mais uma vez de não o evitar e foi o que se deu! Veja o senhor o que são estas coisas! A meu marido só há pouco lhe foi conferido o 2º Grau da Torre e Espada e promovido por distinção ao posto de Capitão-Tenente!”
No dia 8 de Outubro de 1918, comandado por Carvalho Araújo, O “Augusto de Castilho” seguiu para o mar, comboiando o paquete “Beira” da Empresa Nacional de Navegação. A 11 de Outubro, após uma viagem curta, chegaram à baía do Funchal, de onde, um dia depois, surge uma ordem vinda de Lisboa, para que seguissem viagem rumo a Ponta Delgada, protegendo o paquete “S. Miguel”.
Segundo os relatórios da época, devia o “Augusto de Castilho” substituir a canhoeira “Mandovi” de quarentena ao largo do Funchal devido à pneumónica que assolava o país na época.
Largou o caça-minas “Augusto de Castilho”, no dia 13 de Outubro, pelas quatro da tarde, naquela que seria a sua derradeira viagem. O paquete “S. Miguel” levava 206 passageiros, entre homens, mulheres e crianças. Já não era a primeira vez que seriam companheiros de viagem.
A 21 de Agosto de 1918 haviam sido atacados por um submarino que escapara por pouco. Carvalho Araújo, tinha como imediato o Guarda-Marinha Manuel Armando Ferraz e para além de toda a guarnição de que dispunha, seguiam viagem os Aspirantes Carlos Elói da Mota Freitas e Samuel da Conceição Vieira, bem como um operário e três madeirenses, os quatro civis.
São agora seis da manhã do dia 14 de Outubro. Encontra-se o caça-minas a 35º
Carvalho Araújo acabara de render o imediato Manuel Armando Ferraz, que desce ao camarote, deixando o Comandante na ponte, avistando o horizonte. A figura franzina de Carvalho Araújo, espelha bem o cansaço que vinha sentindo. As olheiras profundas e as rugas marcadas pelo desgosto de um destino tão vil, ilustram o mau presságio. Subindo à ponte, o primeiro-maquinista Luís Simões dá os bons dias a Carvalho Araújo, trocando com ele algumas palavras: “Se continuarmos a comboiar navios durante a quarentena, depressa termino as minhas derrotas”, disse o condutor Simões. Carvalho Araújo ainda teve tempo de esboçar um sorriso e de responder “O senhor acaba as suas derrotas. Mas quem fica derrotado sou eu”.
Não passara ainda um quarto de hora desde que o guarda-marinha se tinha recolhido quando, repentinamente se levantam as vozes do destino:
- Submarino, submarino!
A seiscentos metros da alheta de bombordo do S. Miguel, avista Carvalho Araújo a figura terrível do inimigo. O seu dorso prateado e luzidio não deixa qualquer dúvida: Estão perante a ameaça de um terrível predador, um dos monstros que infesta os mares, pondo cobro a tantas vidas.
O U-139 era um dos três temíveis “cruzadores-submarinos” que os alemães possuíam, uma arma mortífera e poderosa construída nos estaleiros Krupp.
Com
Nascido em 18 de Março de 1886 o “Ás absoluto” dos comandantes de submarinos alemães, o Capitão-Tenente Lothar von Arnault de la Perière, comandava agora o U-139. Detentor, até hoje, de um número de afundamentos superior ao de qualquer outro comandante, em toda a sua carreira disparou quatro torpedos (apenas um falhou o alvo), afundando as suas vítimas sempre de acordo com as regras de guerra. Entre Abril/Maio de 1916 havia afundado 23 navios e em Julho/Agosto desse mesmo ano, 54.
Lothar von Arnault de la Perière, comandante do U-139
No entanto e apesar de uma guarnição experiente e treinada em acções de combate, o Capitão-tenente alemão tivera já uma má experiência ao comando do submarino. No dia 1 de Outubro desse ano, a cerca de
Na madrugada de 14 de Outubro de 1918, a poucos dias da ordem do cessar-fogo a toda a navegação mercante, é possível avistar dois vultos a partir da torre de comando do U- 139. São dois navios que prosseguem a uma velocidade de nove nós, em direcção aos Açores. Von Arnault de la Perière observa através dos seus binóculos mas a visibilidade não é ainda suficiente para dar a ordem de ataque. Com o nascer do dia os alemães apercebem-se do valor do navio maior e o comandante manda a guarnição colocar-se nos seus postos de combate, ocupando os artilheiros as suas posições junto das peças. Esperam apenas a ordem de Von Arnault.
São 6:15. À ordem de fogo, dá-se um disparo e poucos instantes depois uma granada explode perto do Augusto de Castilho. Rapidamente todos assumem os seus postos de combate enquanto Carvalho Araújo dá ordens ao imediato, que vinha enrolado no capote, para dirigir o fogo. Manda passar à velocidade máxima e ordena a emissão de um S.O.S.
Para o convés são transportadas as caixas de produtores de fumo de forma a lançar na água uma cortina de fumo que consiga ocultar os dois navios. Da peça de ré trovejam os primeiros tiros na direcção do U-139. As granadas continuam a ameaçar o Augusto de Castilho e, apercebendo-se da situação, o S. Miguel aumenta a velocidade para 14 nós.
Para a guarnição do Augusto de Castilho, cada minuto parece uma eternidade. Até ao momento nenhum dos dois adversários conseguira atingir o alvo.
Com o objectivo de não correr riscos, o comandante alemão mantém o submarino a uma distância de 4000 metros dos disparos dos portugueses, já que a insignificante peça de 65 mm do caça-minas apenas tinha um alcance de 3500 metros.
O duelo de artilharia entre as peças de 47 mm e 65 mm com os dois canhões de 150 mm do submarino parece teimar em não fazer vítimas, não só devido às dimensões reduzidas do barco português e do encadeamento dos seus próprios disparos mas também graças à cortina de fumo que ainda fazia efeito. O inimigo suspende por momentos o ataque tentando visualizar o Augusto de Castilho que não tarda a esgotar as caixas de fumo. O S. Miguel consegue ganhar terreno e apercebendo-se do facto, os alemães não tardam a mudar de alvo, o que leva Carvalho Araújo a ordenar para carregarem todo o leme a estibordo, aproando ao inimigo.
O comandante alemão tem agora que decidir rapidamente entre continuar o combate com o Augusto de Castilho a uma distância segura ou aproximar-se do S. Miguel e correr riscos. Decide então guinar para Sul e continuar o ataque ao caça-minas.
A batalha atinge o seu auge e o número de feridos do Augusto de Castilho aumenta a uma velocidade galopante. O desalento dos bravos marinheiros portugueses espelha-se nas suas faces ao tomarem consciência de que as munições estão quase no fim. O submarino alemão consegue enquadrar mais uma vez o seu alvo e vários estilhaços atingem o navio português. Uma granada rebenta dentro do caça-minas, matando de imediato o aspirante Elói de Freitas. Diversos sargentos e praças ficam gravemente feridos. Também o imediato sofre ferimentos na cabeça e nas mãos, mas sem gravidade. Defendendo a sua causa nobre, os marinheiros portugueses não baixam os braços e mesmo com munições defeituosas abrem fogo, despejando toda a sua raiva.
O combate tivera início há quarenta minutos, quando o imediato corre para a ponte, informando Carvalho Araújo de que as munições não tardarão a faltar e que o número de feridos é cada vez maior.
Ao ver o paquete a salvo, Carvalho Araújo tenta a todo o custo salvar também o seu navio e os sobreviventes. Manda içar a bandeira branca para que os civis possam abandonar o barco. São eles três rapazes entre 14 e 16 anos que rumam a Ponta Delgada, onde irão trabalhar, e um operário serralheiro de
combate. Assim que estes o fazem, volta à carga com as poucas munições que ainda tem, mandando inverter o rumo, para se opor ao poder bélico dos alemães. Quando o imediato vem, mais uma vez, dar-lhe o ponto da situação, o ilustre comandante português cerra os punhos gritando a plenos pulmões – “Hei-de morrer como português! – e ordena em seguida ao marinheiro de leme para aproar novamente ao U-139.
A situação dentro do Augusto de Castilho é dramática. A ponte alta e a cabine de T.S.F estão completamente destruídas e graves avarias assolam todo o pequeno navio. Apercebendo-se a guarnição do deprimente espectáculo dos mortos e feridos, alguns marinheiros abandonam os seus postos e tentam, em vão, socorrer os camaradas que tombam inertes. Carvalho Araújo apercebe-se então de que pouco ou nada pode fazer. Ao ver a peça de ré completamente abandonada, Carvalho Araújo ordena que a guarneçam. O chefe de máquinas e o imediato acorrem e despejam as últimas munições, enquanto o U-139 continua a vomitar disparos na direcção dos portugueses. O imediato é novamente atingido, desta vez nas costas e no antebraço.
Passadas duas horas de uma luta desigual, Carvalho Araújo olha mais uma vez para o interior do seu navio e inspirando o ar da morte manda içar a bandeira nacional que parece enfurecer ainda mais o inimigo. Sem dó nem piedade, o submarino alemão dispara as duas peças, agora a mais curta distância. Desorientados e com medo que o navio fosse torpedeado, a guarnição corre para os salva-vidas que começam a ser içados nervosamente e de forma desorganizada.
É então que o inevitável acontece. Uma granada acerta na amura de bombordo do caça-minas, atingindo mortalmente Carvalho Araújo. Com o peito rasgado e metade de uma perna arrancada, o comandante tomba, vencido pelo destino fatal para onde tinha sido enviado. O imediato corre na sua direcção, chama-o, batendo-lhe na face. Carvalho Araújo, antes do seu último suspiro, pronuncia – Morro…
Caíra o valente comandante. Decerto que, nos breves minutos que antecederam à sua morte, se lembrou de todos aqueles que cá ficariam, daqueles que mais amava e também daqueles que tudo tinham feito para o enviar para a morte.
O porquê de ter continuado o submarino alemão a fazer fogo sobre os portugueses é claro: Não existiu nunca por parte de Carvalho Araújo a mínima intenção de se render. Para ele era mais que uma luta, era a defesa da célebre “A Pátria honrai que a Pátria vos contempla!”.
Para os mortos, a história terminara ali. Para aqueles que sobreviveram iniciara-se uma nova epopeia. Lembrando-se dos documentos que estavam no gabinete do comandante, o imediato tenta encontrá-los, em vão, antes dos alemães. Volta ao convés de onde é atirada um bóia de cortiça para onde se precipitam os últimos homens. O salva-vidas já vai longe, deixando para trás dez homens agarrados à bóia. É o próprio inimigo que se aproxima e, vendo-os feridos e cheios de dores os recolhe, um a um. Já no convés, um oficial alemão pergunta, em francês, se entende essa língua ou o inglês ao que o imediato responde – Ambas. – Escolhendo a primeira para se entender com o imediato, pede-lhe informações sobre Carvalho Araújo, a sua graduação e a do imediato. Enquanto isso, um alemão filma o drama dos portugueses.
No meio de todo este alvoroço, o oficial alemão olha nos olhos de Ferraz e faz justiça à bravura da guarnição do Augusto de Castilho.
- Portaram-se como heróis. O nosso comandante não esperava tanta coragem. Agora vão.
Quando lhes é pedida água, um alemão responde sarcástico – Vão bebê-la a S. Miguel.
“C’est la guerre” respondia o inimigo sempre que os portugueses faziam algum pedido. Mas acabaram por prestar os primeiros socorros aos feridos. O guarda-marinha consegue um bote com um rombo, vedado à pressa com peças de roupa. Mas as provisões para a epopeia que se avizinha são escassas: uma caixa de bolachas, uns míseros pães, uma lata de atum, quinze litros de água e quatro remos ao todo.
São neste momento 11 e meia da manhã. 200 Milhas a remos esperam estes marinheiros.
Texto compilado por Ana Guerreiro, bisneta do comandante Carvalho Araújo
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