Sofia Alexandra Pinheiro de Almeida enviou-nos um dia um email, em que dizia saber pouco sobre os combatentes portugueses que viveram o período da Grande Guerra, em África, França e Portugal. Queria saber mais. Eram várias as histórias e memórias que corriam na família, relacionadas com os tios maternos de sua mãe, e ela ansiava por conhecer como podia entender melhor o percurso daqueles que, independentemente de terem ido ou não para um palco de guerra no exterior, viveram os anos de 1914 - 1918 em Portugal, ao serviço do Exército Português ou à mercê das suas mobilizações e recrutamentos.
Sua mãe, Maria Genoveva, ainda se recorda muito bem do que a mãe, Augusta Maria, lhe contava acerca dos seus dois irmãos. A bisavó de Sofia, mãe de Augusta, e que se chamava Genoveva Rosa, enviou para a tropa dois filhos. A menina ficou em casa com a mãe. Então, pairava sobre Portugal a sombra de um enorme conflito, e os portugueses partiam, já em 1914, para África. Pouco depois começariam a ser mobilizados e recrutados para França, e também havia os que, ao serviço da pátria, prestavam serviço em Portugal, controlando o território, esmagando resistências, acabando com revoltas.
Eram anos conturbados os que se viviam, e Genoveva Rosa, adivinhando tal, tendo já perdido nessa altura vários filhos para as agruras da vida, fez uma promessa a S. Marcos de Calhandriz para que os seus rapazes regressassem sãos e salvos. Caso isso sucedesse, ela pagaria ao santo uma candeia de azeite, que seria enviada para a sua pequena igreja. Contudo, a vida continua a ser agreste, e Genoveva Rosa, tal como sua filha, recordavam-se bem da Pneumónica, que lavrou solta nas zonas de Vila Franca de Xira e Alverca, matando muitos naquela região.
Os dois irmãos chamavam-se Custódio Francisco e Eduardo Francisco. Custódio Francisco, nascido a 8 de Agosto de 1894, era o mais velho dos rapazes, e morava, tal como o seu irmão, em Vila Franca de Xira, em Mato Forte. Alistado a 27 de Agosto de 1914 na situação de recruta, ficou pronto da sua instrução a 24 de Maio de 1915. Passou então à Companhia de Sapadores de Praça, como condutor. Ficou pronto da instrução da sua especialidade em 9 de Julho, sendo decretado que continuaria no serviço efectivo por mais um ano, em virtude do sorteio que tal determinou no dia seguinte, a 10 de Julho de 1915. Foi agregado ao R. I. 2 e passaria ainda ao R.I. 5. Não tomaria parte nas tropas enviadas para África ou França, ficando em Portugal e passado o ano de serviço, voltaria a domiciliar no local de onde saíra. Foi licenciado em 15 de Julho de 1919, pois já não existia o estado de prontidão necessário durante a guerra e poderia fazer parte da reserva territorial, sem esperar ser enviado para uma das frentes de combate a qualquer altura.
Constava da memória familiar que Custódio Francisco era muito rebelde. O que, para Sofia, se veio a confirmar pelo grande número de infracções que constavam do seu processo. Estas, que nos deixam antever como era o serviço militar daquela época, quais as suas penalizações e quais as faltas que podiam levar a repreensões mais ou menos graves, eram:
Sua mãe, Maria Genoveva, ainda se recorda muito bem do que a mãe, Augusta Maria, lhe contava acerca dos seus dois irmãos. A bisavó de Sofia, mãe de Augusta, e que se chamava Genoveva Rosa, enviou para a tropa dois filhos. A menina ficou em casa com a mãe. Então, pairava sobre Portugal a sombra de um enorme conflito, e os portugueses partiam, já em 1914, para África. Pouco depois começariam a ser mobilizados e recrutados para França, e também havia os que, ao serviço da pátria, prestavam serviço em Portugal, controlando o território, esmagando resistências, acabando com revoltas.
Eram anos conturbados os que se viviam, e Genoveva Rosa, adivinhando tal, tendo já perdido nessa altura vários filhos para as agruras da vida, fez uma promessa a S. Marcos de Calhandriz para que os seus rapazes regressassem sãos e salvos. Caso isso sucedesse, ela pagaria ao santo uma candeia de azeite, que seria enviada para a sua pequena igreja. Contudo, a vida continua a ser agreste, e Genoveva Rosa, tal como sua filha, recordavam-se bem da Pneumónica, que lavrou solta nas zonas de Vila Franca de Xira e Alverca, matando muitos naquela região.
Os dois irmãos chamavam-se Custódio Francisco e Eduardo Francisco. Custódio Francisco, nascido a 8 de Agosto de 1894, era o mais velho dos rapazes, e morava, tal como o seu irmão, em Vila Franca de Xira, em Mato Forte. Alistado a 27 de Agosto de 1914 na situação de recruta, ficou pronto da sua instrução a 24 de Maio de 1915. Passou então à Companhia de Sapadores de Praça, como condutor. Ficou pronto da instrução da sua especialidade em 9 de Julho, sendo decretado que continuaria no serviço efectivo por mais um ano, em virtude do sorteio que tal determinou no dia seguinte, a 10 de Julho de 1915. Foi agregado ao R. I. 2 e passaria ainda ao R.I. 5. Não tomaria parte nas tropas enviadas para África ou França, ficando em Portugal e passado o ano de serviço, voltaria a domiciliar no local de onde saíra. Foi licenciado em 15 de Julho de 1919, pois já não existia o estado de prontidão necessário durante a guerra e poderia fazer parte da reserva territorial, sem esperar ser enviado para uma das frentes de combate a qualquer altura.
Constava da memória familiar que Custódio Francisco era muito rebelde. O que, para Sofia, se veio a confirmar pelo grande número de infracções que constavam do seu processo. Estas, que nos deixam antever como era o serviço militar daquela época, quais as suas penalizações e quais as faltas que podiam levar a repreensões mais ou menos graves, eram:
- Por sair do quartel com uniforme de faxina, sem motivo justificado – duas guardas
- Por transportar indivíduos da classe civil na carroça de que é condutor – quinze dias de detenção
- Por ter faltado à 2ª refeição de quarta – uma guarda
- Porque estando de plantão à cavalariça se ausentou do serviço sem autorização – uma guarda
- Por sair do quartel sem licença indo a uma taberna junto ao aquartelamento – uma guarda
- Por causas por desleixo avarias no carro do esquadrão – seis dias de detenção
- Por pretender envolver-se em desordem com um seu camarada proferindo palavras obscenas e por ser encontrado numa caserna que não era a sua – três guardas
- Por partir propositadamente um vidro de um candeeiro – três dias de detenção
- Porque tendo pedido dispensa da formatura do recolher se ausentou do quartel sem a respectiva minuta – três dias de detenção
- Por sair do quartel indevidamente uniformizado – três dias de detenção
- Por ter causado avarias no depósito do estrume – uma guarda
- Porque estando de guarda à cavalariça se ausentou do seu posto de serviço indo para uma taberna – vinte dias de detenção
- Por sair do quartel para as suas proximidades, estando o mesmo de prevenção – quatro guardas
- Por faltar às formaturas para limpeza dos solípedes e da (…) d’água – duas guardas
- Por ser pouco cuidadoso na conservação dos arreios que lhe foram distribuídos para serviço do carro do esquadrão – duas guardas
- Por andar com a farda desabotoada apesar das constantes advertências que lhe têm sido feitas – quatro guardas
- Por que estando de cabo da guarda à cavalariça foi encontrado fora do serviço – seis guardas
- Porque estando de cabo da guarda à cavalariça se ausentou desse serviço para uma taberna contígua ao quartel contrariando as suas obrigações de serviço, as ordens que estão dadas sobre a permanência de praças nas tabernas e praticando acções contra o decoro militar – oito dias de prisão disciplinar.
- Por se dirigir a um primeiro-cabo com termos agressivos – quatro guardas
- Porque estando preso não se conservou devidamente uniformizado – um dia de detenção
- Por colocar uma manta de uma cama debaixo dum arreio de um almoar – oito guardas
- Porque tendo pedido dispensa da recolha e sendo-lhe negada, faltou a essa formatura, e às da primeira refeição – oito guardas
- Por ter faltado à revista de inspecção do corrente ano, infringido o dever 4º do artº 1º do R.D.M. – multa de 15$00
- Por transportar indivíduos da classe civil na carroça de que é condutor – quinze dias de detenção
- Por ter faltado à 2ª refeição de quarta – uma guarda
- Porque estando de plantão à cavalariça se ausentou do serviço sem autorização – uma guarda
- Por sair do quartel sem licença indo a uma taberna junto ao aquartelamento – uma guarda
- Por causas por desleixo avarias no carro do esquadrão – seis dias de detenção
- Por pretender envolver-se em desordem com um seu camarada proferindo palavras obscenas e por ser encontrado numa caserna que não era a sua – três guardas
- Por partir propositadamente um vidro de um candeeiro – três dias de detenção
- Porque tendo pedido dispensa da formatura do recolher se ausentou do quartel sem a respectiva minuta – três dias de detenção
- Por sair do quartel indevidamente uniformizado – três dias de detenção
- Por ter causado avarias no depósito do estrume – uma guarda
- Porque estando de guarda à cavalariça se ausentou do seu posto de serviço indo para uma taberna – vinte dias de detenção
- Por sair do quartel para as suas proximidades, estando o mesmo de prevenção – quatro guardas
- Por faltar às formaturas para limpeza dos solípedes e da (…) d’água – duas guardas
- Por ser pouco cuidadoso na conservação dos arreios que lhe foram distribuídos para serviço do carro do esquadrão – duas guardas
- Por andar com a farda desabotoada apesar das constantes advertências que lhe têm sido feitas – quatro guardas
- Por que estando de cabo da guarda à cavalariça foi encontrado fora do serviço – seis guardas
- Porque estando de cabo da guarda à cavalariça se ausentou desse serviço para uma taberna contígua ao quartel contrariando as suas obrigações de serviço, as ordens que estão dadas sobre a permanência de praças nas tabernas e praticando acções contra o decoro militar – oito dias de prisão disciplinar.
- Por se dirigir a um primeiro-cabo com termos agressivos – quatro guardas
- Porque estando preso não se conservou devidamente uniformizado – um dia de detenção
- Por colocar uma manta de uma cama debaixo dum arreio de um almoar – oito guardas
- Porque tendo pedido dispensa da recolha e sendo-lhe negada, faltou a essa formatura, e às da primeira refeição – oito guardas
- Por ter faltado à revista de inspecção do corrente ano, infringido o dever 4º do artº 1º do R.D.M. – multa de 15$00
Depois da guerra, trabalharia muito para constituir e sustentar a sua família mas perderia a vida, com cerca de 35 anos, levado por uma tuberculose, pouco depois de perder os filhos para a mesma doença.
Já Eduardo Francisco terá sido recenseando no mesmo ano do irmão, mas só entraria para o Exército passados 3 anos, sendo alistado a 24 de Outubro de 1917 na situação de recrutado, e tendo sido incorporado no R.I. 2, tal como sucedera com o seu irmão. Pronto da instrução de recruta em Julho de 1918, acabaria por ser licenciado em 19 de Outubro de 1919, fixando a sua morada no mesmo local onde sempre vivera, tal como o irmão, e passando então a uma situação de reserva, sendo necessário, como a todos os que assim se encontravam, que se apresentasse periodicamente para vistorias e inspecções, visto que todos os homens recrutados deviam servir a pátria até aos 45 anos.
A dada altura da sua vida diz-se que terá emigrado para Espanha, onde formou família. Ainda teria vindo visitar a irmã a Portugal, pois não conseguia arranjar trabalho, mas também não foi bem sucedido, e teria regressado para junto da família, a qual se pensa ter perdido durante a Guerra Civil Espanhola, devido a um bombardeamento ou incêndio, em que todos faleceram. Eduardo teria chegado mesmo a estar preso em Espanha, antes de regressar. A estadia no país vizinho concedeu-lhe a alcunha de Eduardo, o Espanhol, sendo assim que ficou conhecido até falecer com mais de 70 anos. Contudo, a neta Sofia muito lamenta que, pese embora talvez soubesse mais, sua avó Augusta Maria pouco falasse sobre todos estes assuntos, sendo as histórias contadas com falta de pormenores, provavelmente por lhe serem muito dolorosas.
Dos tempos da guerra chegaram também a Sofia estas quadras, contadas pela sua mãe que as escutou tantas vezes à sua:
Soldados velhos desta companhia
Suas armas devem ter
Será possível haver um Galucho
Que a pátria queira defender?
Já Eduardo Francisco terá sido recenseando no mesmo ano do irmão, mas só entraria para o Exército passados 3 anos, sendo alistado a 24 de Outubro de 1917 na situação de recrutado, e tendo sido incorporado no R.I. 2, tal como sucedera com o seu irmão. Pronto da instrução de recruta em Julho de 1918, acabaria por ser licenciado em 19 de Outubro de 1919, fixando a sua morada no mesmo local onde sempre vivera, tal como o irmão, e passando então a uma situação de reserva, sendo necessário, como a todos os que assim se encontravam, que se apresentasse periodicamente para vistorias e inspecções, visto que todos os homens recrutados deviam servir a pátria até aos 45 anos.
A dada altura da sua vida diz-se que terá emigrado para Espanha, onde formou família. Ainda teria vindo visitar a irmã a Portugal, pois não conseguia arranjar trabalho, mas também não foi bem sucedido, e teria regressado para junto da família, a qual se pensa ter perdido durante a Guerra Civil Espanhola, devido a um bombardeamento ou incêndio, em que todos faleceram. Eduardo teria chegado mesmo a estar preso em Espanha, antes de regressar. A estadia no país vizinho concedeu-lhe a alcunha de Eduardo, o Espanhol, sendo assim que ficou conhecido até falecer com mais de 70 anos. Contudo, a neta Sofia muito lamenta que, pese embora talvez soubesse mais, sua avó Augusta Maria pouco falasse sobre todos estes assuntos, sendo as histórias contadas com falta de pormenores, provavelmente por lhe serem muito dolorosas.
Dos tempos da guerra chegaram também a Sofia estas quadras, contadas pela sua mãe que as escutou tantas vezes à sua:
Soldados velhos desta companhia
Suas armas devem ter
Será possível haver um Galucho
Que a pátria queira defender?
Pegar em armas com muito custo
Para as saber manejar
Será possível que haja um Galucho
Que a Pátria queira honrar?
Quanto à promessa, sendo Genoveva Rosa, mãe dos dois irmãos, já idosa, pediu que a mesma fosse paga em seu nome, deixando uma de suas filhas encarregue de fazê-lo, pois temia o castigo divino de não ter cumprido o prometido, e os filhos tinham sido salvos dos horrores do combate em terras distantes. Faleceu contudo sem que a mesma fosse paga, e a filha, um dia, sentindo-se adoentada, referiu à mãe de Sofia – que era sua afilhada! – que não se sentia bem, perguntando-lhe Genoveva «E a madrinha, pagou a promessa?». Como a resposta foi negativa, logo deduziram que a alma da sua avó não estava em repouso, e sua madrinha correu então a pagar a promessa, que assim ficou cumprida, passados muitos, muitos anos.
Durante muito tempo Sofia procurou mais informações acerca destes seus familiares. Primeiro foi ao Arquivo Histórico de Vila Franca de Xira, em busca do recenseamento militar, e ali se deparou com os seus nomes. Um com 17 anos, outro com 20, ambos recenseados pela zona onde moravam. Para saber mais acerca de seus tios-avôs, e tentar entender se estiveram em África ou em França, ou se, caso não tivessem partido para nenhum front, tinham cumprido o seu dever militar por terras de Portugal, entrou em contacto com o Arquivo Geral do Exército, que a informou que detinha ainda as folhas de matrícula pertencentes aos seus familiares. E entendeu então que ficaram por cá, mas compreendeu que não foram menos valorosos por isso. Viviam-se tempos difíceis que, como vimos, ceifavam cedo a vida de muitos, mesmo que não tivessem visto o mato e sentido a sede de África ou visto a lama e as trincheiras da Flandres.
Não parando a sua pesquisa mas entendendo já saber mais do que os dados com que começara, passou-nos toda a informação e visitou-nos nos Dias da Memória, na Assembleia da República, acompanhada da sua mãe. Porque Sofia orgulha-se deles, dos tios-avôs distantes no tempo e próximos do coração, pelo que viveram, pelas suas histórias, e pelas memórias que passaram da bisavó à sua avó, passando pela mãe até chegarem a si. E, com orgulho e sentido de preservação da memória familiar, bem como da memória colectiva, que pertence a todos nós, deu-nos a conhecer a sua história e o seu percurso, muito similar aos caminhos trilhados, agora e amanhã, pelos familiares que procuram saber daqueles que viveram os tempos de há 100 anos atrás.
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