Jaime Daniel (pai), Jaime Daniel (filho) e Luís Daniel: os Leote do Rego na Grande Conflagração

Já aqui abordámos algumas facetas mais desconhecidas do Contra-Almirante Leote do Rego, uma das personagens históricas mais conhecidas da 1ª República, e intrinsecamente relacionada com a Grande Guerra [leia-se a história «A memória familiar do Contra-Almirante Jaime Daniel Leote do Rego»].

Agora, com base no material que nos foi cedido pelo seu neto, Luís Leote, bem como no que obtivemos no Arquivo Histórico Militar (Lisboa), e utilizando-nos de uma fotografia familiar, em que podemos ver o Contra-Almirante com os seus dois filhos, recordemos esses jovens, que partiram para a guerra em França com vontade de lutar pela pátria francesa, bem como pela defesa da sua, e dos valores da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade. Valores esses que deviam pautar todas as relações entre povos, e onde se incluiria a jovem República Portuguesa.

A fotografia é simples. Ao centro o Contra-Almirante Leote do Rego, ladeado pelos dois filhos. À direita, Jaime Daniel, seu homónimo, seu primogénito; à esquerda, Luís Daniel. Os olhares demonstram o cansaço de quem já viu horrores e presenciou perigos diversos. Esta fotografia cristaliza o fim do conflito para os dois irmãos, bem como a reunião com o pai. Resta-nos agora saber um pouco mais acerca destes dois jovens que, como tantos outros, foram arrastados para aquele cruel conflito, colocando em risco as suas vidas.

Uma vez mais, para podermos conhecer a história destes dois irmãos, tornou-se essencial a memória e a história familiar guardada por Luís Leote, neto do Contra-Almirante e sobrinho de ambos. A ela adicionámos informação de arquivo, que nos clarifica o percurso feito pelos dois combatentes na Frente Ocidental durante o conflito.

 

 Jaime Daniel, um herói do 9 de Abril

 

Luís Leote recorda que seu tio Jaime Daniel nasceu em 1896, e foi aluno do Colégio Militar, sendo então um desportista, como o eram muitos jovens que entravam para aquela instituição. Foi em equitação que brilhou. A guerra apanhá-lo-ia, como a muitos jovens da sua idade, e enviá-lo-ia para França, para combater por Portugal. 

Refere o seu boletim que era solteiro, filho de Jaime Daniel Leotte do Rego e de Amélia Trancoso Leote do Rego, natural de Lisboa e ali residente. Alferes, pertencente a Cavalaria 5, embarcou de Lisboa a 27 de Agosto de 1917, a bordo do navio Pedro Nunes, rumo a Brest e a uma guerra que o transformaria profundamente.

A sua ficha é explícita. A 17 de Fevereiro de 1918 é transferido para o 5º Grupo de Baterias de Artilharia como Chefe da Secção de Sinaleiros. Ali será gaseado a 21 de Março de 1918. Está igualmente presente na batalha de 9 de Abril, onde é ferido, referindo a ficha que terá sido internado no Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa no dia seguinte, tanto por causa do gaseamento, sofrido dias antes, quanto pelos ferimentos que tinham sido provocados por estilhaços, já durante a Batalha do Lys.

Luís Leote recorda-se bem da história que lhe foi contada. Seu tio foi dado como morto durante aquela batalha. Contudo, o seu impedido, de nome Neves, não acreditava na morte «do seu capitão», e foi à sua procura. Dizia ele que revolveu muitos corpos, um a um, até que o encontrou, inconsciente, fortemente gaseado e com a face cortada de alto abaixo pelo que pensou então ser um golpe cortante, talvez de sabre ou baioneta. Fora um estilhaço. Transportado para fora do campo de batalha, às costas do seu impedido – que assim lhe salvou a vida –, acabaria por vir a recuperar, não sem ficar com uma cicatriz visível no rosto, que nunca quis minorar, ostentando-a com orgulho.

Tinha razões para tal, pois foi louvado pelo seu papel no combate de 9 de Abril, onde manifestou coragem e dedicação pelo seu serviço, oferecendo-se prontamente para ir restabelecer uma importante ligação telefónica que se tinha perdido, tendo para tal que atravessar uma forte barragem de artilharia. Assim foi ferido, e por tal foi louvado, pois colocou-se em perigo para restabelecer as comunicações da sua Bateria de Artilharia. Para além do louvor, seria ainda agraciado com a Cruz de Guerra de 2ª Classe.

Antes do seu internamento no hospital da Cruz Vermelha Portuguesa, Jaime Cortesão, gaseado em 21 de Março e internado no Hospital de Sangue nº 2, encontra-o ferido numa cama daquela unidade hospitalar, quando esta se encontrava já prestes a ser evacuada. Diz Cortesão:

«Um enfermeiro vem e diz-me que um oficial ferido, há pouco chegado, me pede para ir falar-lhe. Onde é? — No pavilhão, ao pé da capela do hospital. Desço ao parque. A multidão peja o recinto. A ressaca furiosa da batalha vem ali bater às golfadas, e espadana, volteia, ruge como as ondas, que invadem as grandes furnas a meio da costa, dentro do Mar. Desde a manhã raras granadas caíam nestas paragens; mas agora ao começo da tarde afluem umas trás doutras; e, aqui e além, desabam explosões, enquanto as shrapnells de 15 ribombam sobre o hospital. As ambulâncias automóveis entram, correm, partem de novo ou estacam e arfam trepidando. Paro desnorteado. Para lá dos meus olhos baços vai um formilhar de espectros, que desemboca dos carros fundos, sopesa macas, e se dispersa ou choca em redemoinhos e grita, comanda, ulula.

Entro no pavilhão e busco com o olhar algum rosto conhecido. […]«As camas estão cheias. Então lá do meio um gesto brando acena-me. Avanço até ao leito, donde sai um meio corpo inquieto e uma cabeça de face inchada, os queixos atados, deixando ver junto da boca o extremo duma larga ferida. Custa-me a reconhecê-lo, tão deformado e branco tem o rosto. É o alferes Jaime Leote do Rego. E baixinho, que o bulir dos lábios abre-lhe dores na face, conta-me o seu caso. Noite ainda, marcha para a frente, a restabelecer as ligações telefónicas. Já alguns ingleses abandonam as baterias esfaceladas. E êle continua na sua faina, em meio da tempestade, arrostando longo tempo, no cumprimento terrível do dever, o vendaval de ferro e fogo, até que um. Estilhaço lhe rasga a face desde a orelha à boca. Duas horas tem que andar a pé, esvaindo-se em sangue. Lá fora e perto uma granada estoira com violência. Um sacudir convulso de paredes. E o moço herói, agora aniquilado, com inquietação febril, agarra-me na mão e pede que o não deixe, se acaso evacuarmos o hospital. Vou saber,— digo-lhe;— e ao sair, acaba de se espalhar, veloz, a ordem de evacuação. Todos os doentes ou feridos que andem pelo seu pé, por grave que seja o seu estado, têm de abandonar o hospital e seguir para as ambulâncias da rectaguarda, a mais próxima das quais está dali a três léguas. Os outros, os feridos de gravidade, hão-de sair pouco a pouco nas ambulâncias-automóveis.»

[Jaime Cortesão, Memórias da Grande Guerra]

Continuaria em convalescença por algum tempo, tendo inclusivamente vindo a Portugal em finais de Abril, para gozar uma licença de 30 dias, atribuída por Junta Médica, e que foi prolongada por mais tempo, até ao seu regresso a França, que calculamos ter ocorrido em meados de Agosto (sendo que o mesmo não é muito explícito mas passível de ser colocado por essa altura, tendo por base os 30 dias que lhe foram atribuídos depois da junta de 13 de Julho de 1918). Seria então colocado no 6º Grupo de Baterias de Artilharia, enquanto Chefe da Secção de Sinaleiros.

Finda a guerra, Jaime Daniel não regressaria logo a Portugal. Por Ordem do Corpo de 3 de Junho de 1919 será adstrito a uma Comissão Portuguesa de Reclamações, bem como trabalhará ainda na Comissão Liquidatária do CEP, razão pela qual só regressa a Portugal em 15 de Abril de 1920, por via terrestre, pese embora tenha gozado algumas licenças no seu país. Segundo documento assinado pelo Director dos Serviços de Estatística e Estado Civil do CEP, serviço esse situado no Palácio das Necessidades, chegado a Lisboa, Jaime Daniel foi mandado apresentar-se ao Comando da 1ª Divisão do Exército, para ali receber novas ordens e se apresentar ao Comando Geral da Guarda Nacional Republicana, onde teria sido então colocado este ainda alferes de cavalaria.

Tal como Luís Leote nos contou, Jaime Daniel continuaria a servir a Pátria e o Exército Português nos anos vindouros. Casaria com Susanne Emilienne Carpentier, natural de Lille, senhora francesa que conheceu durante uma estadia em Calais. Pertenceria ao Estado-Maior do Exército, onde exerceria funções logísticas, de escolha dos novos equipamentos para as Forças Armadas, tendo auxiliado as mesmas a adquirir veículos motorizados e novo armamento. Sempre recusou promoções e vivia uma vida simples, mas acabaria por falecer muito novo, em 1943, vitimado por uma crise cardíaca agravada pelo gás que inalou nas trincheiras.

 

Luís Daniel, uma vida em movimento

 

De Luís, seu homónimo e tio, Luís Leote guarda gratas memórias, pois o mesmo faleceu em 1990 com 96 anos de idade e sem descendência. Nascido em 1895, também ele foi aluno do Colégio Militar. Á época foi desportista famoso, tendo sido membro da equipa portuguesa de Water Polo.

Comparativamente ao seu irmão, o seu papel na Grande Guerra é aparentemente mais simples e também se encontra menos documentado. A sua ficha de combatente poucos dados contem. Refere que o alferes de Engenharia Militar Luís Daniel, pertencente à Secção Técnica do Regimento de Sapadores Mineiros, partiu para França a 16 de Fevereiro de 1917. Foi promovido a tenente miliciano já em Março de 1918, cumpriu o seu dever sem faltas mas sem louvores, teve pelo menos uma licença em campanha e foi abatido ao efectivo do CEP por ser dispensado dos serviços que efectuava, tendo provavelmente regressado a Lisboa em Junho de 1919, por via terrestre, não sendo a data e a forma de transporte referenciada no mesmo documento.

Contudo, a sua vida e o seu percurso movimentado pela mesma estava ainda a começar. Sobrevivente da Grande Guerra, passará por Luanda, como parte da "entourage" de Norton de Matos, partindo depois para Londres, onde foi Cônsul de Portugal. Ali conheceu a sua futura mulher, Gertrud Römer, natural de Innsbruck e que se encontrava ali refugiada. Assim, e como seu sobrinho recorda, continuou na capital britânica a sua carreira diplomática, na Embaixada de Portugal em Londres, em Belgrave Square, onde desempenhou vários cargos, desde secretário do Duque de Palmela a Adido Comercial da Embaixada. Terminaria a sua carreira como Conselheiro do Ministério dos Negócios Estrangeiros, sendo mencionado até 1964 no Anuário daquele mesmo Ministério.

De regresso a Portugal, foi então administrador da Anglo-Portuguese Telephone Co. (APT) e consultor na Administração Geral do Açúcar e do Álcool. Publicou duas obras, uma sobre o mercado mundial de açúcar, outra sobre o mercado do trigo e guardou para si e para a família o segredo de ter sido o elemento de ligação entre o governo português e o governo da Rodésia independente, o que fez de forma discreta e à revelia das sanções impostas pela Inglaterra, das quais Salazar então discordava. Pormenor este que sempre divertiu muito seu sobrinho Luís Leote, que nos chegou mesmo a dizer: «Era o meu tio agente secreto, dizia-lhe eu por brincadeira.». E assim, depois de uma vida movimentada e cheia, com a belíssima idade já referida, faleceria na sua casa em Cascais, deixando saudade a quem com ele conviveu.



Irmãos, batalhadores, jamais desistindo dos seus objectivos, aprendizes do pai, que sempre viram batalhar contra todas as intempéries, mesmo as mais duras, como o seu exílio, assim foram os irmãos Leote do Rego. Juntos, ladeando o pai, podemos agora vê-los, cristalizados no tempo, num dia depois da guerra, algures em França, unidos para uma fotografia como sempre foram unidos na vida. Assim os recorda seu neto e sobrinho. E assim os devemos recordar nós: como mais dois valorosos combatentes nesta frente de guerra que agora conhecemos como Primeira Guerra Mundial. 

 

Informação Adicional

Autor - Relator
Margarida Portela
Testemunha - Contador
Luís Leote

Intervenientes

 

Nome
Jaime Daniel Leote do Rego
Cargo
Alferes
Nome
Luís Daniel Leote do Rego
Cargo
Tenente

Teatros de Guerra

 

Teatros de Guerra
França

Direitos e Divulgação

 

Entidade detentora de direitos
Instituto de Historia Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova Lisboa – Portugal
Tipo de direitos
Todos os direitos reservados
Link para acesso externo
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As grandes figuras públicas possuem uma história que reflecte exactamente a vertente pública que possuem ou possuiram, algures no passado. Contudo, os pormenores pessoais, íntimos, encontram-se frequentemente no domínio da esfera familiar. O Contra - Almirante Leote do Rego foi, sem sombra de dúvida, umas das personagens mais influentes dos primórdios da Republica, e conhecida figura na Lisboa e no Portugal da Grande Guerra. Contudo, o que aqui se espelha não é essa parte da história mais conhecida. Seu neto trás até nós os pormenores mais desconhecidos de uma vida que ficou amplamente marcada pelo percurso português durante o conflito e que, por causa deste e das suas escolhas, assim como os desígnios portugueses que elegeram Sidónio Pais, foi obrigado ao exílio e à sua sobrevivência no mesmo... Este é um vislumbre do seu lado mais pessoal, que nos trás Luis Leote, neto do Contra-Almirante Leote do Rego.

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